Tudo que vejo nele é uma imensidão onde meu
olhar se perde em deslumbramentos.
Gustave Flaubert
(a respeito de Shakespeare)
O primeiro Shakespeare a gente
nunca esquece. Na minha primeira vez, eu já estava familiarizada com Romeu e
Julieta e tinha escutado falar muito do seu Júlio
César. Mas o velho Bill mesmo, de verdade, foi num Hamlet que dava mole lá em casa. Tradução de Péricles Eugênio da
Silva Ramos, vejam vocês.
O legal de ler
Shakespeare é que a gente nem sabe o quanto já sabe de sua obra até com ela se
defrontar. Pois foi o que se deu comigo. Estava com 12 anos quando abri o Hamlet. De cara, surpreendeu-me o
formato do texto teatral. A organização das falas, o valor das rubricas, tudo
era novo. O vocabulário impressionava mais que tudo. Como se não bastassem as
palavras desconhecidas, havia, ainda, as traduções de palavras inventadas pelo
bardo inglês. Como entender aquilo? O recurso às notas de rodapé impunha
constantes interrupções, e eu não sabia como fazer para manter o ritmo da
leitura do texto buscando, sempre que necessário (e era sempre necessário)
esclarecer dúvidas.
De lá para cá,
tenho pensado muito nessa conciliação. É fundamental que o leitor seja
enfeitiçado pelo texto, que não deseje abandoná-lo; ao mesmo tempo, ele precisa
informar-se sobre o contexto em que foi escrito, entender do que se fala para
conseguir construir a imagem mental do que lê. O prazer da leitura supõe
compreensão, mas o esforço pelo entendimento leva à suspensão da leitura.
Hamlet ou Amleto?, de Rodrigo Lacerda,
também não soluciona o problema. É livro para ser lido por quem já conhece o
texto, já teve sua curiosidade aguçada e deseja aprofundar-se nos seus sentidos.
O tom bem-humorado, parece-me, é o ganho da obra.
Lacerda coloca
o/a leitor/leitora como ator/atriz a quem cabe representar o papel do príncipe
da Dinamarca. Já na abertura, explica o tamanho dessa responsabilidade. A
partir daí, ele o/a leva pela mão, através de atos e cenas, não apenas tirando
possíveis dúvidas sobre o vocabulário, mas também contextualizando a trama,
sempre com muito humor. Para explicar como é o personagem central, ele começa
por dizer:
Você foi educado a vida inteira para reinar.
Conhece desde o berço as mais sofisticadas etiquetas, as grandes obras de arte
antigas e modernas, os manuais para o sucesso na vida pública, as ciências mais
avançadas – geografia, astronomia, astrologia, alquimia, filosofia, física,
química e matemática – e a história dos grandes impérios. É o perfeito exemplo
do príncipe renascentista. Está finalizando sua esmeradíssima educação na
Alemanha, mais especificamente em Wittenberg, onde uma universidade famosa, fundada
em 1502, tem como mestres os grandes pensadores do seu tempo. Não faça caso do fato de a
universidade só ter sido fundada aproximadamente quatrocentos anos depois da
data em que a história se passa. É um anacronismo desimportante, entre outros.
Sempre com o
intuito de situar o leitor, o autor condensa o que os críticos dizem sobre as
intenções dos personagens e os significados de suas ações e dá, inclusive, as
possíveis linhas de interpretação para cada um deles. O rei Cláudio amava
realmente a mulher de seu irmão ou apenas a usava para chegar ao poder? Ela, a
rainha Gertrudes, mãe de Hamlet, era tão falsa e cruel quanto Cláudio ou apenas
uma mulher oprimida, que se habituou a seguir as orientações dos homens?
Qualquer que seja a posição adotada, haverá um modo de indicar, mesmo que de
forma velada, o que pensa e sente cada personagem.
As inúmeras
perguntas que o texto de Shakespeare nos coloca não necessariamente terão
respostas, nem Rodrigo Lacerda parece ter esse objetivo. Antes, ao prover-nos a
nós, leitores e leitoras, de informação, proporciona-nos o prazer de
redescobrir na tragédia do príncipe dinamarquês as grandes, eternas questões da
humanidade.
LACERDA, Rodrigo. Hamlet
ou Amleto? Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.